sábado, 30 de março de 2013

Guarda-Rios

Não sei se comes peixes, ou não comes,
Irmão poeta Guarda-Rios:
Sei que tens o céu nas asas e consomes
A força delas a guardar rios.
 
É que os rios são água em mocidade
Que quer correr o mundo e conhecer;
E é preciso guardar-lhe a tenra idade,
Que a não venham beber ...
 
Ave com penas de quem guarda um sonho
Líquido, fresco, doce:
No meu livro te ponho,
E eu no teu rio fosse ...
 
 
Guarda-Rios. Mas porque haveria eu de me lembrar de tal coisa? Estas aves não existem na Quinta, nem na ilha, e muito menos nos Açores. E quanto aos rios, por aqui, apenas a tranquila Ribeira do Salto, que vislumbro do meu quintal, e nos últimos tempos ouço-a a derramar, abundante de águas, São Bartolomeu abaixo.

Então porque trazê-lo aqui?

Por dois motivos coincidentes: as leituras e as aves.

Passo a explicar: este Inverno, tenebroso, tem convidado ao recolhimento e às leituras. Dígamos que apetece sentar num sofá, esticar os pés, cobrir o corpo com uma manta, pegar numa chávena de chá fumegante com uma mão e um livro com a outra.

Neste impulso de leitura decidi voltar-me para os clássicos portugueses. Admito, tenho uma incultura abissal da literatura portuguesa. Consegui fugir aos livros obrigatórios no liceu, nem lhes pus a vista em cima. É que nem li aqueles criminosos resumos que se publicam para as crianças não se darem ao trabalho de ler. A competência dos meus professores permitiu-me passar ao de leve pelas "Viagens da minha terra". Quanto ao resto, foram tudo projectos visionários de um programa escolar.

Este poema, apareceu, assim, na página de um dos livros que se abriram cá por casa. Não um que esteja a ler, mas um que irei ler. Estava ali no meio dos dias do Miguel Torga, num dos seus Diários, disfarçado com o nome de "Saudação". É lindo e simples, e, para quem já viu um guarda-rios, sabe imediatamente que este poema é a sua essência de pássaro.

Coincidência ou não, e vamos agora até ao segundo motivo: um amigo meu, viajando há poucos dias por Santa Maria, observou e fotografou um guarda-rios. Este que aparece aqui no topo da página. Estou certa que, secretamente, ouviu o poema do Miguel Torga, sem mesmo se ter dado conta disso.

Este guarda-rios não é o mesmo dos versos acima. É um primo americano, uma ave migradora trazida pelas intempéries, atravessando os mares que separam os Açores das américas. Apesar das suas asas serem de um azul menos céu, que o seu parente europeu, não deixa de ter uma essência comum.

Regresso, então, aos motivos escondidos deste post. Tentava descortinar o sentido das palavras de Alberto Caeiro quando escreveu que "Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol".

Agora já sei. Ponho-me a desejar que a beleza destes incontáveis dias de chuva venha nas asas de um guarda-rios. Imagino-o, estando eu na minha horta, a deslizar sobre a Ribeira do Salto como um raio de luz azul sobre a água. E aí sim, o significado oculto do universo para tanta chuva revelar-se-ia perante os meus olhos - um Guarda-Rios na Quinta da Vinagreira.

Nota: Obrigado ao Miguel Torga pelo poema e ao Rúben Coelho pela fotografia. Ver mais pormenores destas e de tantas outras aves que chegam aos Açores em: http://avesdosazores.wordpress.com/

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