Não sei se comes peixes, ou não comes,
Irmão poeta Guarda-Rios:
Sei que tens o céu nas asas e consomes
A força delas a guardar rios.
É que os rios são água em mocidade
Que quer correr o mundo e conhecer;
E é preciso guardar-lhe a tenra idade,
Que a não venham beber ...
Ave com penas de quem guarda um sonho
Líquido, fresco, doce:
No meu livro te ponho,
E eu no teu rio fosse ...
Guarda-Rios.
Mas porque haveria eu de me lembrar de tal coisa? Estas aves não existem na
Quinta, nem na ilha, e muito menos nos Açores. E quanto aos rios, por aqui,
apenas a tranquila Ribeira do Salto, que vislumbro do meu quintal, e nos
últimos tempos ouço-a a derramar, abundante de águas, São Bartolomeu abaixo.
Então porque
trazê-lo aqui?
Por dois
motivos coincidentes: as leituras e as aves.
Passo a
explicar: este Inverno, tenebroso, tem convidado ao recolhimento e às leituras.
Dígamos que apetece sentar num sofá, esticar os pés, cobrir o corpo com uma
manta, pegar numa chávena de chá fumegante com uma mão e um livro com a outra.
Neste
impulso de leitura decidi voltar-me para os clássicos portugueses. Admito,
tenho uma incultura abissal da literatura portuguesa. Consegui fugir aos livros
obrigatórios no liceu, nem lhes pus a vista em cima. É que nem li aqueles
criminosos resumos que se publicam para as crianças não se darem ao trabalho de
ler. A competência dos meus professores permitiu-me passar ao de leve pelas
"Viagens da minha terra". Quanto ao resto, foram tudo projectos
visionários de um programa escolar.
Este poema,
apareceu, assim, na página de um dos livros que se abriram cá por casa. Não um
que esteja a ler, mas um que irei ler. Estava ali no meio dos dias do Miguel
Torga, num dos seus Diários, disfarçado com o nome de "Saudação". É
lindo e simples, e, para quem já viu um guarda-rios, sabe imediatamente que
este poema é a sua essência de pássaro.
Coincidência
ou não, e vamos agora até ao segundo motivo: um amigo meu, viajando há poucos
dias por Santa Maria, observou e fotografou um guarda-rios. Este que aparece
aqui no topo da página. Estou certa que, secretamente, ouviu o poema do Miguel
Torga, sem mesmo se ter dado conta disso.
Este
guarda-rios não é o mesmo dos versos acima. É um primo americano, uma ave
migradora trazida pelas intempéries, atravessando os mares que separam os
Açores das américas. Apesar das suas asas serem de um azul menos céu, que o seu
parente europeu, não deixa de ter uma essência comum.
Regresso,
então, aos motivos escondidos deste post. Tentava descortinar o sentido das
palavras de Alberto Caeiro quando escreveu que "Um dia de chuva é tão belo
como um dia de sol".
Agora já
sei. Ponho-me a desejar que a beleza destes incontáveis dias de chuva venha nas
asas de um guarda-rios. Imagino-o, estando eu na minha horta, a deslizar sobre
a Ribeira do Salto como um raio de luz azul sobre a água. E aí sim, o
significado oculto do universo para tanta chuva revelar-se-ia perante os meus
olhos - um Guarda-Rios na Quinta da Vinagreira.
Nota:
Obrigado ao Miguel Torga pelo poema e ao Rúben Coelho pela fotografia. Ver mais
pormenores destas e de tantas outras aves que chegam aos Açores em: http://avesdosazores.wordpress.com/